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O Mediterraneo nom é a nossa nai

O Mediterraneo nom é a nossa nai
Trazendo para a órbita mediática o seu fumoso projecto de uniom mediterrânica, Sarkozy quiz, com certeza, realizar um dos seus "golpes" de comunicaçom graças aos quais finge existir — ou pelo menos faz parecer. Mas, por trás da operaçom política, está uma operaçom muito mais importante, de natureza ideológica. Trata-se efectivamente de afirmar ao mundo que o mundo mediterrâneo é um bloco unido, soldado por uma pertença comum a uma etnocultura única e destinado a integrar-se, tal e qual, à Europa. Ou, mais exactamente, a essa utopia que é a Euráfrica. No fundo, trata-se de justificar a imigraçom africana na Europa como sendo um fenómeno inevitável mas benéfico, que permitirá a instalaçom de uma civilizaçom mestiça, trazida por uma populaçom na qual europeus e africanos se vam fundir numa mistura harmoniosa, polo exemplo dado polo mundo mediterrâneo.

É preciso constatar, nom sem lamento (pois esta revista trouxe muito ao debate ideológico, apesar de nom partilharmos todas as suas posiçons), que o n.º 129 da revista «Éléments» se inscreve na mesma perspectiva, publicando um dossier intitulado "Mediterrâneo nossa nai". Um título talvez inspirado no que Thierry Maulnier deu ao seu óptimo livro "Cette Grèce où nous sommes nés" [Esta Grécia onde nascemos], publicado pela Flammarion em 1964.

Também no seu editorial Robert de Herte, ou seja Alain de Benoist, faz abundantemente referência à Grécia para exaltar as virtudes mediterrânicas. "Esquecendo" que alargar ao conjunto do Mediterrâneo o contributo decisivo, evidentemente incontestável, da Grécia à civilizaçom europeia é um disparate histórico. Inspirado talvez nos conceitos de Danilo Zolo, professor de direito internacional em Florença, que, numa entrevista à «Éleménts», que deseja ver "reaparecer uma Europa enraizada na sua cultura milenária, com as suas raízes mediterrânicas". É necessário recordar a este distinguido universitário que as raízes da Europa som polo menos tanto célticas, germânicas e eslavas como greco-romanas? E, quando Robert de Herte-Alain de Benoist escreve que o Mediterrâneo "é um espaço entre terras, o que significa que tanto une como separa", introduz necessariamente a ideia, se as palavras têm sentido, que o Mediterrâneo une, num mesmo conjunto, as populaçóns instaladas, desde há milénios, nas terras banhadas por ele: Espanha e Catalunha, Languedoc e Provença, Itália, países balcânicos, Grécia, Turquia, Síria, Líbano, Israel, , Egipto, Líbia, Tunísia, Argélia, Marrocos. O que confirma a apresentaçom do diário de viagem de Ange-Marie Guerrini (intitulado muito significativamente "De Toledo a Cartago"): o Mediterrâneo "é um conjunto de povos, ligados entre si por influências marítimas e luminosas".

Ora no curso da história do Mediterrâneo, longe de ser um traço de uniom, uma "ligaçom", foi uma linha da frente. Mesmo quando o império romano fez a unidade política, provisória, do que os romanos chamavam Mare nostrum, foi após confrontos mortais entre Roma e Cartago no plano político e militar, Atenas e Jerusalém no plano filosófico e religioso.
Confrontos que opunham concepçóns do mundo inconciliáveis — e que ficaram num império romano minado polo veneno oriental. Confrontos retomados quando o islam tenta submeter a Europa à lei corânica. Como se pode conceber que pertencem ao mesmo espaço cultural e civilizacional Roma e Cartago, Atenas e Jerusalém, a Provença e o Magrebe? É preciso, para afirmar a unidade cultural do mundo mediterrâneo, apoiar-se num postulado ideológico que, como todos os postulados ideológicos, foi, é e será contradito, totalmente, polo peso das realidades étnicas. Pois é esse o fundo do problema: nom existe uma unidade étnica no Mediterrâneo; só há, até hoje, confrontaçom étnica. As ilusóns do período colonial (com a muito famosa "integraçom", de Dunkerque a Tamanrasset) desfizeram-se nos anos 1950-60, a guerra da Argélia veio lembrar o peso das realidades étnicas.

É no meio do Mediterrâneo que passa a fronteira entre dois mundos: o Norte e o Sul. Sabemos qual é a tese dos terceiro-mundistas (que contam nas suas fileiras com Alain de Benoist, depois da publicaçom, em 1986, do seu livro "Europe, Tiers monde même combat" [Europa, Terceiro mundo, o mesmo combate]): o Norte – quer dizer o mundo branco – é responsável polas misérias do Sul – quer dizer o mundo nom-branco. O Norte deve assim arrepender-se e expiar os seus pecados – particularmente subsidiando largamente e, melhor, acolhendo e sustentando em sua casa populaçóns do Sul (que à época a revista Europe-Action chamava muito justamente não "subdesenvolvidos", mas subcapazes). Qualquer observador minimamente atento e lúcido sabe que o século XXI será o do enfrentamento Norte-Sul, que já começou pois a fronteira mediterrânica é alegremente violada pela imigraçom. Com efeito, também, o campo ocidental traiu os homens do Norte justificando, pola ideologia dos "direitos do homem", a invasom vinda do Sul. Razom de sobra para recusar tudo o que contribua para justificar essa invasão. Por exemplo, a exaltaçom de um islam trouxe os refinamentos de uma verdadeira civilizaçom aos bárbaros do Norte.

Este cliché ideológico, que beneficia de uma larga orquestraçom mediática — vejam-se os protestos suscitados pola sólida obra de Sylvain Gouguenheim[1] — seduziu certos intelectuais (ou seja pessoas muitas vezes alheadas das realidades), desde o século XIX, na Alemanha e noutros sítios. Foi o caso de Nietzsche, a cuja autoridade recorre Robert de Herte apoiar a sua posiçom. Nietzsche que louvou a "maravilhosa civilização moura de Espanha"... Como a qualquer pessoa que nom é perfeita, aconteceu, mesmo a Nietzsche, escrever asneiras — pode-se ser um grande filósofo e nom ter uma sólida cultura histórica[2]. O destruidor do cristianismo nom compreendeu, ou nom quis compreender, que cristianismo e islãm som irmáns inimigos porque provenientes da mesma matriz semítica, que é preciso procurar do lado do Sinai. Quanto ao Grande Meio-dia nietzscheano, referido também por Robert de Herte, é preciso lembrar, mesmo assim, que nom tem nada que ver com o Sul já que se inscreve numa perspectiva puramente espiritual. Basta, para o saber, ler seriamente o autor de "Assim falava Zaratustra". O que evita lastimáveis contra-sensos, ainda mais incómodos pois som instrumentalizados para justificar o injustificável.

Pierre Vial
in «Terre & Peuple» n.º 37

[1] Aristote au Mont-Saint-Michel. Les racines grecques de l’Europe chrétienne, Le Seuil, 2008. Veja-se, sobre o "affaire Gouguenheim" e as suas razóns de ser ideológicas, o artigo de Bernard Fontaine na La Nouvelle Revue d’Histoire, n.º 37, Julho-Agosto de 2008.
[2] A "maravilhosa civilização moura de Espanha" é ilustrada, do século XI ao século XIII, pelos Almorávidas e os Almóadas, fanáticos de Alá vindos de África para "regenerar", em nome da jihad, um islãm de Espanha julgado muito brando e precursores dos islamitas actuais no que respeita aos seus métodos "maravilhosamente civilizados". Veja-se a este respeito Philippe Conrad, Histoire de la Reconquista, PUF, 1998. [Edição portuguesa: História da Reconquista, Europa-América, 2003.]

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